quarta-feira, 31 de março de 2010
o cinema de António Reis e um novo electronic journal
sexta-feira, 26 de março de 2010
A Poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem um estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e com as imagens. Por isso o poema fala não de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume de tilia e do oregão.
È esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas uma matéria há apenas artesanato.
È o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia ao qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz "obsucuro", "amplo", "barco", "pedra" é porque as palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de establecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o "obstinado rigor" do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilibrio das palavras entre si é o equilibrio dos momentos entre si.
E no quadro sensivel do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia
em Obra Poética III, pg- 95-96
terça-feira, 23 de março de 2010
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Fernando Pessoa em "O Eu Profundo". |
Férias da Páscoa
segunda-feira, 1 de março de 2010
a que estamos dispostos?
Ítaca
Quando abalares, de ida para Ítaca,
Faz votos por que seja longa a viagem,
Cheia de aventuras, cheia de experiências.
E quanto aos Lestrigões, quanto aos Ciclopes,
O irado Poséidon, não os temas,
Disso não verás nunca no caminho,
Se o teu pensar guardares alto, e uma nobre
Emoção tocar tua mente e corpo.
E nem os Lestrigões, nem os Ciclopes,
Nem o fero Poséidon hás ‑de ver,
Se dentro d'alma não os transportares,
Se não tos puser a alma à tua frente.
Faz votos por que seja longa a viagem.
As manhãs de verão que sejam muitas
Em que o prazer te invada e a alegria
Ao entrares em portos nunca vistos;
Hás ‑de parar nas lojas dos fenícios
Para mercar os mais belos artigos:
Ébano, corais, âmbar, madrepérolas,
E sensuais perfumes de todas as sortes,
E quanto houver de aromas deleitosos;
Vai a muitas cidades do Egipto
Aprender e aprender com os doutores.
Ítaca guarda sempre em tua mente.
Hás ‑de lá chegar, é o teu destino.
Mas a viagem, não a apresses nunca.
Melhor será que muitos anos dure
E que já velho aportes à tua ilha
Rico do que ganhaste no caminho
Não esperando de Ítaca riquezas.
Ítaca te deu essa bela viagem.
Sem ela não te punhas a caminho.
Não tem, porém, mais nada que te dar.
E se a fores achar pobre, não te enganou.
Tão sábio te tornaste, tão experiente,
Que percebes enfim que significam Ítacas.
konstantinos kavafis